O mito dos superespirituais e a difícil arte de viver fora do sistema

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O mito dos superespirituais e a difícil arte de viver fora do sistema



Além de ouvir várias vezes “acusações” do tipo que quero ser melhor do que os outros – como se isso fosse pecado –, algumas pessoas me “acusam” de ser superespiritual. Elas têm a ilusão de que saí do sistema religioso e estou vivendo em um infinito retiro espiritual, que oro e leio a Bíblia o dia todo e por isso muitos pensam que é impossível fazer a mesma coisa. Realmente se eu vivesse assim, diria que é impossível para muita gente, mas ser superespiritual é um grande mito inventado pelos líderes religiosos, que se colocam nesse pedestal e impõem esse jugo aos seus seguidores.

Há algum tempo tive o seguinte diálogo com uma pessoa e é um bom exemplo do que estou querendo dizer.

"Ela: Sei que você está certa em sair do sistema religioso e até em guardar os mandamentos, mas precisa ter coragem para fazer a mesma coisa e eu não tenho.

Eu: Mas de que você tem medo? De cair no "mundão", passar a noite em baladas, beber até cair etc? Não vejo você fazendo isso, principalmente porque tem dois filhos para criar, dar exemplo.

__ Não, não é disso que tenho medo. Tenho medo de esfriar, de não orar, de não querer ler a Bíblia. Porque lá na religião eles incentivam a gente a fazer isso.

__ Ah, muito bem. Então deixe eu te explicar uma coisa. Os líderes religiosos colocam um fardo muito grande nas nossas costas. Eles vivem dizendo: tem que orar pelo menos uma hora por dia, tem que ler três capítulos da Bíblia por dia, sábado e domingo tem que ler cinco capítulos, tem que ler a Bíblia toda em um ano, tem que acordar de madrugada para orar, tem que ir a todos os eventos da instituição, tem que fazer jejum para tudo [P.S.: E depois quebra o jejum com feijoada para todos no domingo. Eca, argh, quanta incoerência! Faz jejum e depois come porco e alimentos que a Torah proíbe? Sei.], tem que isso, tem que aquilo. Ufa! O ser humano comum não consegue fazer tudo isso, temos as nossas obrigações diárias, trabalho, escola, cuidar da casa, dos filhos. Esse jugo que querem que a gente carregue é um absurdo. Os líderes até podem fazer isso, é o trabalho deles, principalmente os que recebem para dedicar tempo integral à religião. [Quem nunca telefonou para a casa do líder da sua religião e a filha, ou esposa, responde que ele está no escritório orando? E depois ele diz que se isola no escritório e fica orando e estudando a Bíblia todos os dias até o meio-dia. E depois prega sobre isso no domingo, dizendo que todos deveriam ser como ele.] Mas deixa eu te dizer uma verdade, eu não faço nada disso, vivo uma vida normal, não vivo em um convento ou mosteiro e não virei eremita. Leio a Torah uma vez por semana, no shabat, normalmente pela manhã, e durante a semana leio conforme a demanda, às vezes me vem um texto à mente, aí vou pesquisar, às vezes leio alguns versículos dentro de um artigo na internet, às vezes leio para postar um texto na internet, mas parar para ler, tirar um tempo exclusivo para isso, só no shabat. E também não oro com hora marcada, nem oro de joelhos, nem coloco despertador para acordar de madrugada para orar. Nem faço jejum por qualquer motivo. Vivo a simplicidade da Torah, sem jugo, sem peso. Mas eu oro o dia todo enquanto cuido da vida, lavando louça, navegando na internet, andando na rua, quando sinto um aperto no coração por alguém, oro onde estiver e sem parar o que estou fazendo. Os únicos momentos “sagrados” são as orações antes das refeições, apenas uma oração de gratidão mesmo, nada de ficar orando por tudo nessa hora, e antes de dormir, quando sempre oramos juntos, eu e meu marido, mas também são preces rápidas e deitados na cama mesmo. E também só faço jejum parcial nos dez dias antes de Yom Kipur, um jejum mais completo no dia de Yom Kipur e o jejum de pães sem fermento em Pessach.

__ Hum! Estou ouvindo.

__ Então me diz, você não lê a Bíblia com seus filhos antes de dormirem? Sei que faz isso, porque já vi você fazendo.

__ É verdade.

__ E você não ora pelo seu marido enquanto ele está no trabalho, ou quando pressente algum perigo rondando sua casa? E não ora pelos seus filhos quando estão na escola? E durante o dia também não ora por algum motivo que lembra, enquanto cuida da casa?

__ Sim, faço tudo isso.

__ Agora me diz para que você precisa de religião? Você sabe que deve educar e dar exemplo aos seus filhos. Por isso vai ensinar a Bíblia para eles, porque você também sabe que a religião não é a responsável pela educação espiritual das suas crianças, você é que tem que ensinar. E sabe também que na sala das crianças na religião tem mais brincadeira e lanchinho do que ensino bíblico. Então você não vai esfriar, porque você tem a responsabilidade com seus filhos.

__ É verdade, tudo isso é verdade.

Pouco tempo depois essa pessoa passou por injustiças e momentos de desilusão com a liderança de sua religião e acabou saindo do sistema. Mas ainda bem que não procurou outra instituição. Criou coragem e está vivendo fora do sistema e está se descontaminando de toda mentira que ouviu lá dentro."

Entendo que muitas pessoas não saem da religião por causa do medo que o sistema incutiu nas suas mentes, com as terríveis ameaças que os líderes fazem, com toda a lavagem cerebral a que são expostas diariamente. E sinto dor por elas, sei como deve ser difícil carregar esse medo.

Deixar de ter mentalidade de escravo é difícil, sei disso. Libertar-se do sistema é uma grande batalha. E mesmo para alguns que saem do sistema é difícil aprender a caminhar sozinhos, é difícil fazer escolhas sozinhos, sem alguém que lhes diga o que fazer a todo instante. Isso me lembra uma história que ouvi e que sempre vem à minha mente.

É a história de um homem que cometeu um crime e ficou preso por muitos anos, envelheceu dentro da cadeia. No final da pena, foi solto e voltou a morar com sua esposa. Ele estava feliz com sua liberdade e resolveu ir ao mercado sozinho. Sua esposa ficou em casa esperando e ele demorando a voltar. Algumas horas depois, muito preocupada, ela foi atrás dele e entrou no mercado e começou a procurá-lo pelos corredores. Enfim encontrou o marido parado diante da prateleira de aparelhos de barbear. Ela pergunta o que houve e ele explica que ficou ali parado por muito tempo, olhando as muitas opções de marca, de modelo, de tamanho, e ele simplesmente não conseguia escolher. Ele chorava e dizia que passou tantos anos com alguém escolhendo as coisas por ele e ele agora não conseguia escolher sozinho.

Infelizmente alguns acabam voltando ao sistema religioso porque não sabem caminhar sozinhos e por causa do mito dos superespirituais. Areditam que não vão conseguir sobreviver sem alguém dizendo o que deve ler, o que deve estudar, como deve orar, como deve jejuar etc etc.

É a verdade da famosa frase da festa de Pessach: “Você até consegue tirar uma pessoa do Egito, mas difícil é tirar o Egito de dentro da pessoa”.

P.S.: Vale lembrar que isso de orar, ler a Bíblia e jejuar é muito pessoal. Cada um tem seu ritmo, seu método, seu relógio biológico e seu dom e chamado. Se a pessoa gosta de acordar de madrugada para orar, ótimo, ela que o faça, mas não fique querendo que todos sejam iguais. Daniel orava três vezes por dia? Legal, mas isso era dele, e nós não temos que fazer a mesma coisa por obrigação. Se não consegue ler um capítulo, leia pelo menos um versículo, mas não deixe de ler apenas porque não consegue cumprir a meta que o líder tirano decretou. Cada um com sua impressão digital diferente e cada um respeitando a impressão digital do outro.